sexta-feira, janeiro 12, 2007

Ler

Os livros são casas com meninos dentro e gostam de os ouvir rir, de os ver sonhar e de abrirem de par em par as paisagens e as imagens para eles, lendo, poderem sonhar.

Os livros gostam muito de contar histórias, mesmo que essas histórias sejam contadas em verso com a mesma naturalidade com que eu escrevo, com que eu converso.

Os livros também respiram, e o ar que lhes enche as páginas tem o aroma intenso das viagens que eles nos convidam a fazer, sempre à espera que a magia daquilo que nos contam possa realmente acontecer.

Os livros são novos e antigos, mas não gostam de ter idade. Disfarçam uma mancha, uma ruga e gostam de viver em liberdade numa prateleira alta, sobre a mesa em que se escreve ou na bibliotecas da cidade. E é por isso, porque o seu tempo é sempre maior que o tempo, que eles não gostam de ter idade.

Os livros gostam de adormecer com os meninos e contarem-lhes lendas, contos e histórias que eles nunca hão-de esquecer e que outros livros mais novos com eles hão-de aprender. E o que cada leitor descobre ao lê-los é que eles, de facto, gostavam de saber.

Os livros têm nomes que se chamam títulos e as partes do seu corpo por vezes chamam-se capítulos e sentem-se vaidosos se alguém os quer ilustrar com as cores e os traços que lembram o céu e o mar e com as figuras inventadas que os fazem rir e chorar.

Os livros temem o fogo e o mal que ele lhes faz porque aquilo que ele queima por certo não se refaz e porque o fogo é o rosto que às vezes o medo tem quando, ao queimar um livro,mata os seus sonhos também, não deixando nem uma linha para ser lida por ninguém.

Os livros vêm do tempo em que não havia livros por não haver papel impresso. Mas havia o papiro e também o pergaminho e as mil e uma histórias das mil e uma noites que se contavam no caminho e quase tudo o que então se sabia estava guardado, quem diria? na Biblioteca de Alexandria onde acabou por morrer um dia.

Os livros têm saudades das histórias da infância contadas pelas avós que faziam da distância o atalho que levava até onde a imaginação as multiplicava como se fossem frutos de uma qualquer estação onde a poesia se guardava.

Os livros gostam de se deitar nas almofadas dos meninos partilhando o seu sono quando eles são pequeninos e de ir com eles para escola misturados com os cadernos e com os beijos dos pais, sempre quentes, sempre ternos.

Os livros são o que são e a ninguém hão-de enganar porque aquilo que anunciam é o que neles se vai encontrar: a aventura, a fantasia, a magia que há no luar quando ilumina na página aquilo que ela tem para mostrar.

Os livros são como as casas, quem nelas tem morada; são afinal as personagens cuja história é contada pela mão que inventa e escreve e que é a do escritor, mão apressada e leve que faz de cada palavra um acto criador. Mas criador de quê? dos sentidos que existem naquilo que o leitor lê.

Os livros gostam de fadas, de bruxas e de duendes e de outras personagens que, afinal, só tu entendes como se, sendo leitor, estendesses o tapete voador que transporta o que aprendes, entre fadas e duendes, para um lugar com mais cor.

Os livros podem ter alma como os bichos que os habitam, sejam gatos, cães ou peixes, águias, grilos ou golfinhos ou ainda as andorinhas que sobrevoam os caminhos onde vai ficando o rasto daquilo que tu vais lendo nos teus queridos livrinhos.

Os livros são a metade dos sonhos que tu tens, são a tua liberdade e o maior dos teus bens,porque tendo a tua idade têm tudo o que tu tens.

Os livros põem nas capas como as pessoas no rosto aquilo que querem mostrar, aquilo que dá mais gosto a quem os vai encontrar. E é assim que atraem dos leitores a atenção e lhes prendem o afecto que é meio caminho andado para chegar ao coração.

Os livros têm perfume que não é de homem ou de mulher e nem sequer é parecido com outro perfume qualquer; é um perfume sem nome, não é de flor ou maresia, mas tem o aroma secreto que existe na poesia.

Os livros gostam que os marquem com marcadores coloridos ou com pétalas ressequidas que lembram os perfumes que ficaram de outras vidas, de outros sonhos e leituras e das falas que alguém pôs na boca de grandes figuras, feitas personagens de romances de aventuras.

Os livros são esconderijos onde as palavras engalanadas se preparam para a festa das coisas enamoradas pelo mistério de quem conta mesmo sabendo que ao contar a história nunca está pronta, porque em cada recanto do texto há sempre algo que desponta só para nos encantar.

Os livros são tão livres como os mais livres de nós e por isso há quem receie que os livros ganhem voz e venham para o meio da rua com a verdade nua e crua do que têm para dizer. E o que têm para dizer é, no fundo, a liberdade que o escritor tem ao escrever.

Os livros gostam de ser dados como presentes aos amigos mais chegados, às pessoas mais diferentes, mesmo não indo embrulhados em papéis bem reluzentes.

Os livros gostam de dar alegria a quem os lê e só eles e quem os escrevelá no fundo sabe porquê.

Os livros gostam de ser amados, de ser lidos e lembrados e de crescer com os meninos com que foram embalados.

Os livros têm um sonho: o de ver outros livros nascer para que a paixão da leitura não possa nunca morrer.

Os livros têm heróis que hão-de sempre admirar, desde o grande D.Quixote até ao Peter Pan a voar, passando pela pequena Alice e pelo Principezinho com que gosta de sonhar. Se os livros fossem heróis teriam ainda, eu sei, muitas batalhas para ganhar.

Os livros têm poetas abrigados sob os versos com palavras como setas e fins que são começos quando poema finge que está quase a terminar, revelando os universos que outros versos irão mostrar. Pouco importam os processos se a magia a vós chegar.

Os livros têm raízes como as árvores do jardim, guardam as flores para ti e os frutos para mim esó ficam com o perfume que devagar nos envolve como uma fala cantante que nos preenche e comove.

Os livros sabem de cor aquilo que a gente esquece e mal ele termina nós queremos que recomece apenas porque sabemos que o feitiço acontece e que há uma parte de nós que ao relê-los estremece. Os livros fazem perguntas porque sabem que as respostassão bem menos interessantes e que algumas se mantêm tão actuais como dantes.

Os livros têm saudades daquilo que está para vir, que o passado já o conhecem e não o querem repetir. São saudades soletradas com a ternura das fadas que gostam de pôr livros na árvore das madrugadas.

Os livros às vezes sentem o peso que a vida tem, mas, que eu saiba, não se queixam a ninguém.Vão cumprindo o seu destino, sabendo que é uma missão. E essa missão o que é? É estar sempre, sempre onde os leitores estão.

Os livros são casas livres onde as palavras se cruzam para mostrarem os sentidos que têm e que usam.

Os livros são tão livres como a nossa liberdade, seja na areia da praiaou na biblioteca da cidade, porque sempre que se abrem dizem o muito que sabem só para nos dar felicidade.

José Jorge Letria

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